Passei no mestrado, com uma excelente nota. Podia ter sido melhor se talvez eu tivesse dedicado umas duas semanas de estudo para Química Orgânica e Bioquímica, assim como fiz para QSAR. Eu podia ter aprendido a reação de Knoevenagel, lembrado de reações orgânicas. Podia ter feito aquele cálculo de cinética enzimática. Sempre empurrei com a barriga cinética enzimática. Mas me comprometi a de verdade a estudar essas duas disciplinas, antes de começar as aulas. Questão de honra.
Assim trato os assuntos da minha vida, meu trabalho, meus estudos, minha família: uma questão de honra. Bem ou mal, minimamente tenho algum controle sobre esses assuntos. Meu desempenho profissional e acadêmico dependem muito de mim. O clima dentro de casa depende muito da minha capacidade de engolir sapos.
Engolir sapos. Metáfora interessante. Talvez se aplique a fobia que tenho ao anfíbio com cara triste, aspecto denso, mas potencialmente perigoso.
Engulo sapos sabe se lá desde quando. Engolia pra não incomodar meus pais. Engolia pra minha mãe não aborrecer minha avó. Engolia pra professora não brigar com todo mundo. Engolia pra não desabar em lágrimas no meio da sala. Mas sapo é um animal, como já dito, com potencial perigoso. Muitos possuem veneno. A gente fica engolindo esses sapos da vida e fica acumulando veneno dentro da gente. Isso não pode dar certo.
Com tudo isso sempre preferi me isolar a ter que lidar novamente com algum tipo de frustração a ter que engolir sapos. Se me afasto de alguém, te garanto, com certeza essa pessoa me fez engolir um batráquio de um kg pelo menos.
Isso sempre me fez retornar pro meu cantinho, pro meu centro. Aqui ninguém tem acesso. Tem uma serpente gigantesca que não sente nem cócegas com os sapos que tem que engolir.
Mas uma coisa é você se colocar no seu cantinho.
Outra é alguém te colocar lá.
Isso explica muito do que me fez suspender por enquanto qualquer tipo de investida sentimental.
Vá lá, dê me um livro de bioquímica e duas semanas, eu te garanto que conseguirei expressar maravilhosamente cinética enzimática.
Mas sentimentos, tristes, felizes, hediondos, barulhentos, perturbadores não são como cinética enzimática. Não são tão simples. Eu posso, devidamente preparada, falar após algum tempo de cinética enzimática. Eu não posso fazer o mesmo quando eu estou com ciúmes, quando estou com saudade, quando estou com raiva. Eu não posso nem mesmo fazer quando estou explodindo de felicidade por estar com alguém do meu lado sem ouvir "olha só, vamos com calma com essas expectativas'. Então um momento legal é entendido como uma expectativa. E a pessoa me põe no cantinho.
Pessoa pisou na bola, me magoou, eu vou externar isso, o que ela me fala?
"Cara, eu não te prometi nada, não me cobra".
Me pôs no cantinho.
Vou chamar pra irmos num cinema, num restaurante que acho legal.
"Ahhh... Então... Não posso... Hoje não dá... Conheço lá, não gostei... (etc.)"
Me pôs no cantinho.
Estou com ciúmes. Vou tentar racionalizar a coisa e expressar.
"Olha só ela, tá apaixonadinha, tá brabinha".
Me pôs no cantinho.
Acho que precisa ter muita coragem pra assumir-se como pessoa ciumenta. Acho que tem muito medo interno pra pessoa que diz que não é ciumenta e tentar racionalizar e expressar aquilo sem parecer contraditório.
O fato é que nunca conheci alguém, nem na história dos ditadores, que não tivesse insegurança, que não se sentiu rejeitado, que não se sentiu vulnerável ao gostar de alguém. Acho que isso é parte disso que a gente interpreta como ser um humano.
Mas a gente tem medo. Tem medo de se abrir, de falar de nossas inseguranças e o outro vir e nos rebaixar, nos humilhar, tripudiar do que sentimos. Dá medo de se entregar de alma e coração e a pessoa ficar com medo e se afastar.
Então a gente meio que se obriga a viver com cara de blasé, a parecer que tem sangue de barata, a perdoar e desculpar tudo pra (tentar) não afastar o outro. Ou para que esse outro não perceba sua vulnerabilidade com sua entrega, com sua inseguraça/ciúme, com sua alegria para ter aquela atitude de me pôr no cantinho e dizer inconscientemente "ahhhhh, você está completamente vulnerável e a minha mercê? Ótimo. Então fica a minha mercê nesse cantinho, que eu vou ali me divertir com outra pessoa enquanto você fica aí. Talvez eu lembre de você quando ninguém mais me querer".
Com o tempo, a gente se acostuma a ficar tanto no cantinho, com nossos livros, nossas flores, nossos brinquedos, que não queremos mais sair dali.
"Sair por quê, se ninguém quer dividir esse lugar comigo e me deixam sozinha?"
Vamos fazer o que nos propomos. Vamos aqui nesse cantinho estudar cinética enzimática.